Autor : Adilio Marcuzzo Junior (27/06/2012)
Durante estes meus vinte e seis anos de serviços na manutenção de aeronaves tive contato com diversas pessoas no Brasil e no exterior e observei o modo de vida e pensamento delas e como as diferenças culturais entre os países determinam seus sucessos e fracassos.
Geralmente os países mais desenvolvidos são aqueles onde as leis são aplicadas igualmente a todos, sem exceção, e as pessoas trabalham em prol de um bem comum a toda a sociedade. Nestes países as pessoas se ajudam mutuamente e o interesse é a satisfação de todos os cidadãos.
Nos países menos desenvolvidos observo que os interesses individuais, ou de determinados grupos, se sobressaem sobre os da sociedade, causando sempre atrasos ao desenvolvimento destes países e ocasionando serviços de péssima qualidade a seus cidadãos.
Mas como esta diferença cultural influencia a administração de nossa aviação ?
Nestes anos de trabalho na aviação fui testemunha de algumas situações que comprovam a falta de visão de nossos administradores de aviação civil, seja do antigo DAC e da atual ANAC, quanto à sua função de auditores e promotores de uma política de melhoria da segurança de vôo. Estes casos que, cito abaixo, às vezes comprovam o que digo sobre as diferenças entre os países uma vez que em nada contribuem para a segurança de vôo, mas para atrapalhar o desenvolvimento de nossa aviação e causar transtornos desnecessários a operadores que investem milhões de dólares na compra de uma aeronave e que geram diversos empregos, sejam nas áreas operacionais ou de manutenção, bem como, em aeroportos e outras atividades indiretas.
Caso 1 : cadernetas de manutenção (IAC 3152) : em outubro de 2002 o antigo DAC editou a IAC 3152 criando modelos padronizados de cadernetas de célula, motores e hélices e os operadores teriam cento e vinte dias, a partir da edição desta IAC, para cumprir seus requisitos. Logicamente, num universo de milhares de operadores, alguns se esquecem de verificar novas regras, o que não seria desculpa para eles, porém, dois fatores aqui contribuíram para que isto ocorresse.
Primeiro : a formação de pilotos em aeroclubes e escolas de formação onde o RBAC 61 e o RBHA 91 não são matérias de formação básica de pilotos, porém estes são obrigados a conhecer tais regulamentos e as IS/IAC correspondentes.
Segundo : o antigo DAC deveria informar os operadores, através de convenções e palestras, as alterações na legislação antes delas serem editadas, isto até acontecia para a área de manutenção, porém, desconheço que algo semelhante já tenha sido feito, inclusive, pela atual ANAC para operadores de aeronaves. Geralmente, toda a informação sobre novidades na legislação é passada pela oficina ao operador até hoje. Vocês acreditam que tem operador que pensa que as oficinas são responsáveis pelo gerenciamento de suas aeronaves ????
Após esta pequena explanação, vou citar o caso que ocorreu com um cliente que pousou em um aeroporto e, imediatamente, o representate do antigo DAC solicitou ao piloto as novas cadernetas uma vez que constava uma pendência no sistema informatizado do DAC identificando que uma divisão do DAC no Rio de Janeiro havia emitido um ofício informando que o operador não havia aberto as cadernetas no novo padrão previsto na IAC 3152 durante uma vistoria feita anteriormente. O piloto, prontamente entregou, para este representante do DAC, as novas cadernetas mostrando que as mesmas já haviam sido abertas. Para surpresa do operador, o representante disse que, somente recebendo um outro ofício da divisão do DAC do Rio de Janeiro poderia liberar a aeronave. Notem que a aeronave estava em outra cidade longe dos olhos de algum representante do DAC do Rio de Janeiro e o representante local que estava VENDO as cadernetas nada poderia fazer para resolver esta situação, ou seja, uma aeronave de milhões de dólares parada devido a um sistema centralizador que impedia que um representante deste, que estava VENDO que o operador nada mais devia, liberasse a aeronave pois, uma pessoa a milhares de quilômetros, sem ver o que realmente estava acontecendo é quem deveria liberar a aeronave. Uma pergunta : o que a abertura de uma caderneta tem a ver com a segurança de vôo ? O DAC não poderia ter marcado uma nova vistoria com o operador e agendar um encontro em uma outra data para o operador apresentar as cadernetas sem atrapalhar a operação da aeronave ? Por que um representante do sistema não tem autonomia para agilizar a liberação de uma pendência, em qualquer lugar do país se ele é quem está vendo que a discrepância já está cumprida ?
Caso 2 : FIAM a bordo da aeronave : há alguns anos atrás um cliente me ligou às 17:00 h de uma sexta-feira enfurecido, pois sua aeronave, que havia pousado no Rio de Janeiro, estava interditada, dizendo que a oficina em que eu trabalhava não havia atualizado as informações da IAM que havia sido atestada naquela semana. Imediatamente liguei para o representante do DAC no aeroporto onde estava a aeronave e perguntei se a FIAM não estava a bordo e o mesmo confirmou que já havia visto a FIAM, porém, no sistema informatizado do DAC ainda constava a IAM como vencida. Informei ao mesmo que estando a FIAM a bordo da aeronave ele deveria liberar a mesma, pois este assunto havia sido tema de diversas palestras do DAC com oficinas e a ordem era que nenhum representante do DAC poderia interditar uma aeronave baseado na informação de IAM vencida no sistema informatizado do DAC se a FIAM estivesse a bordo, uma vez que a antiga IAC 3108 dava a margem de 15 (quinze) dias para a oficina protocolar a DIAM após a realização da IAM. A resposta que obtive do representante é que ele desconhecia esta ordem. Outra vez cito o caso 1, se ele estava vendo a FIAM por que não liberou a aeronave ? Várias vezes pedi aos palestrantes do DAC, nos diversos seminários, que aquele departamento criasse uma págima de FAQ com as perguntas e respostas geradas nestes eventos o que poderia ter ajudado, em muito, nesta situação, mas estou esperando, até hoje, estas questões serem colocadas no site da ANAC. Felizmente, consegui falar com o pessoal de oficinas do antigo SERAC-4 em São Paulo que eram de uma competência extraordinária e um ofício foi enviado ao Rio de Janeiro liberando a aeronave para vôo, pois a DIAM já hivia sido protocolada naquele SERAC.
Caso 3 : revisão de motores convencionais : atualmente podemos ver no site da ANAC (http://www.anac.gov.br/FAQ.aspx?categorias=0&palavraChave=tbo) uma explicação sobre a não obrigatoriedade da revisão de motores convencionais, em vez de esclarecer os operadores a ANAC causa mais confusão, pois toda a vez que fazemos inspeções de pré-compra de aeronaves convencionais no exterior o comprador me pergunta quais itens são recomendados e quais são mandatórios no Brasil e eu respondo : todos os itens do capítulo 5 do manual de manutenção de célula e componentes, excetuando-se os citados no capítulo 4 ou em algum outro documento mandatório são de cumprimento OPCIONAL !!! Então eu peço para a ANAC, de uma vez por todas, atualizar estas informações no site abrangendo todas as tarefas do capítulo 5 e não somente o TBO de motores, que está causando grande confusão entre os operadores principalmente durante a importação de uma aeronave que deve ser preparada para a vistoria inicial e na realização de IAM por oficinas homologadas.
Caso 4 : novamente FIAM a bordo de aeronave : O RBHA 91.203 é claro quanto aos documentos que um operador deve portar a bordo :
91.203 AERONAVE CIVIL. DOCUMENTOS REQUERIDOS
(a) Exceto como previsto em 91.715 e nos parágrafos (b), (c) e (d) desta seção, nenhuma pessoa pode operar uma aeronave civil brasileira, a menos que ela tenha a bordo os seguintes documentos:
(1) certificado de matrícula e certificado de aeronavegabilidade, válidos, emitidos pelo Registro Aeronáutico Brasileiro (RAB);
(2) manual de vôo e lista de verificações;
(3) NSMA 35 e 37, expedidas pelo CENIPA;
(4) exceto para aeronaves operadas segundo o RBHA 121 ou 135:
(i) apólice de seguro ou certificado de seguro com comprovante de pagamento;
(ii) licença de estação da aeronave;
(iii) Ficha de Inspeção Anual de Manutenção (FIAM) ou registro dos últimos serviços de manutenção que atestaram a IAM; e
(5) para aeronaves operando segundo os RBHA 121 ou 135, os documentos e manuais requeridos pelo RBHA aplicável.
A ANAC somente esqueceu de citar no RBHA 91.203 aquele documento que a IAC 3151 recomenda : o diário de bordo. Esperamos que na edição do RBAC 91 o diário de bordo seja incluído no parágrafo 91.203.
Este caso que vou comentar agora aconteceu recentemente e comprova que os vícios do antigo DAC ainda contaminam a atual ANAC no que se refere à gestão do controle centralizado e engessado de nossa aviação e no que se refere à manutenção de certas atividades burocráticas que em nada melhoram o nível de segurança de nossa aviação civil e, na realidade, contribuem para a piora deste nível uma vez que causam pressões e estresses desnecessários às nossas tripulações.
O caso ocorrido, recentemente, foi o de um cliente que, após adiantar a realização de uma IAM por vontade própria em março deste ano, pois a IAM anterior ainda estava válida pelo vistoria inicial efetuada em setembro do ano passado, recebeu um “Deveres Informar” da ANAC devido a FIAM não estar a bordo da aeronave.
A FIAM é considerada um documento secundário de manutenção e deve ser emitida pela oficina que atestou a IAM da aeronave e conforme o parágrado 91.203 do RBHA 91 deve estar a bordo da aeronave. A pergunta que devemos fazer a ANAC é : qual o motivo da emissão de uma FIAM se a oficina já coloca a etiqueta de IAM nas cadernetas da aeronave e, atualmente, informa que atestou a IAM através de uma e-DIAM diretamente no site da ANAC ? Por que motivo burocratizar a aviação com a existência da FIAM ?
Por que o representante da ANAC simplesmente não considerou a DIAM digital como válida se foi emitida por oficina homologada pela ANAC ? Por que punir um operador que foi mais zeloso solicitando a emissão de uma nova IAM sem necessidade, pois a IAM anterior estava válida, contribuindo, assim, para manter o nível de segurança de sua operação ? Sabemos que a oficina avalia todos os requisitos de aeronavegabilidade durante uma IAM e este operador se preocupou em verificar estes itens. O fato de um documento (FIAM) sem nenhuma função prática não estar a bordo agora é motivo de punir quem zela pela segurança de sua aeronave mesmo existindo um comprovante da realização da IAM pelo governo (e-DIAM) ?
Por que a própria autoridade de aviação civil, que cria as regras, descumpre o que está escrito nos regulamentos exigindo uma IAM de aeronave multimotora a turbina que não seria mandatória conforme especificado no RBHA 91.409(e) ? Como o governo quer cobrar de um operador que este siga as regras se este mesmo governo não sabe interpretar o que escreve ?????
Uma dica que dou a operadores e oficinas a partir de agora : colem a etiqueta da IAM no Diário de Bordo, pois ela é o documento primário que atesta a IAM e a própria ANAC reconhece que esta etiqueta substitui a FIAM a bordo da aeronave conforme descrito no RBHA 91.203.(a).4(iii) :
(iii) Ficha de Inspeção Anual de Manutenção (FIAM) ou registro dos últimos serviços de manutenção que atestaram a IAM;
Finalmente, gostaria de deixar algumas perguntas para que você leitor refletisse sobre este artigo e o nosso futuro de nossa aviação e de nosso país :
Qual a punição para uma autoridade de aviação civil que não interpreta corretamente a legislação que escreve ou que se contradiz nos textos de vários regulamentos ?
Qual a punição para um operador que faz tudo corretamente e por um erro, não intencional de esquecer um documento, sem nenhum valor prático para a segurança de vôo e que nem deveria existir ?
Se ao invés de punirmos, sem motivo real, os cidadãos pagadores de impostos e cumpridores de suas obrigações e nos ajudarmos mutuamente, copiando os países desenvolvidos, não estaríamos no caminho para um desenvolvimento mais acelerado ?
Não seria melhor nos unirmos para um bem comum enfatizando a educação ao contrário de optarmos pela punição ?
Em um país livre e desenvolvido o governo facilita a vida dos cidadãos, em uma ditadura ele dificulta.
GLOSSÁRIO :
ANAC - Agência Nacional de Aviação Civil
DAC - antigo Departamento de Aviação Civil
FAQ - Frequently Asked Questions
FIAM - Ficha de Inspeção Anual de Manutenção
DIAM - Declaração de Inspeção Anual de Manutenção
IAM - Inspeção Anual de Manutenção
RBAC - Regulamento Brasileiro de Aviação Civil
RBHA - Regulamento Brasileiro de Homologação Aeronáutica
SERAC - antigo Serviço Regional de Aviação Civil
Para maiores esclarecimentos sobre este assunto ou outras dúvidas, consultem o livro “Legislação Aeronáutica Comentada – Ênfase em Manutenção” disponível para compra pela Editora ASA (www.asaventura.com.br)