Autor: Pedro Paulo Euzébio Junior – Tecnólogo em Manutenção de Aeronaves
1 – INTRODUÇÃO
O RBAC 43 é o regulamento que tem por finalidade estabelecer quem pode executar manutenção em aeronaves e o que pode realizar, tanto no que se refere a execução da manutenção como na aprovação para retorno ao serviço.
Todo MMA (Mecânico de Manutenção Aeronáutica) deve conhecer bem os limites de sua atuação profissional, evitando, assim, executar tarefas que não possa realizar ou deixar de fazer tarefas que possam. E, desta forma, a junção dos requisitos do RBAC 43 e do RBAC 65 são primordiais para este fim.
Porém, a tarefa de interpretar o RBAC 43 é um grande desafio para nós MMA brasileiros, por motivos que vão desde o sistema jurídico indo até a formação educacional dos mecânicos.
Digo isto baseado em minha experiência profissional de 40 anos, onde pude presenciar vários mecânicos que por não terem recebido uma educação formal adequada e tão pouco entender o idioma inglês (maioria das instruções técnicas utilizadas), acabaram limitando a sua carreira.
Esta má formação dos mecânicos fez com que várias posições fossem ocupadas por vários profissionais que não tiveram a oportunidade de executar manutenção de aeronave, porém ocuparam este espaço que os mecânicos não tiveram condição para tal.
É muito comum você interagir nas oficinas com vários profissionais de diversas áreas que nunca passaram pela execução de manutenção, sendo da área Comercial de Vendas de Serviço, seja da área de Qualidade, seja da área de Controle Técnico de Manutenção, Segurança Operacional, entre outros.
Esta condição também se faz presente no corpo de técnicos da Autoridade Aeronáutica que interagem com as atividades de manutenção, bem como de alguns dos PCAs.
Aqui não quero tecer nenhuma crítica a qualquer um destes profissionais, muito pelo contrário, vários executam excelentes trabalhos e agregam positivamente no setor da Indústria Aeronáutica, porém a falta do traquejo na execução da manutenção cria uma dificuldade importante em interpretar as questões subjetivas que envolvem este regulamento especificamente.
O que geralmente vemos, como fruto deste fato, é um mecânico avesso a “papelada” e um CTM e Qualidade extremamente sobrecarregados, com responsabilidades além das que deveriam serem suas, com uma postura excessivamente restritiva.
Assim criamos dois ambientes diferentes, com relações superficiais derivadas de dois ambientes distintos para a mesma atividade, ou seja, o mundo da “graxa” e o mundo da “papelada”.
2 – CONDIÇÕES DE DIFICULDADE
a) Característica Intrínseca do RBAC 43
Este regulamento, por regular a execução da manutenção de aeronave, está carregado de requisitos que depende de uma análise subjetiva principalmente de alguns pontos específicos onde há de se verificar um certo nível de complexidade da tarefa de execução da manutenção.
Pode acreditar, é mais simples trocar um módulo do gabinete eletrônico (MAU) de um Gulfstream como a AGM, do que trocar um pneu (tarefa descrita na lista de manutenção preventiva do RBAC 43 de um King Air.
Acredito que muitos discordarão da minha percepção, mas para quem já fez as duas tarefas concordará comigo e, é exatamente neste ponto, que digo que a falta de experiência na execução das tarefas de manutenção dificulta a interpretação do RBAC 43.
b) Sistema Jurídico Americano x Brasileiro
Na década de 60, do século passado, o FAA (Federal Aviation Administration) em um processo de organização da aviação americana, emitiu um regulamento voltado para a manutenção das aeronaves chamado de FAR 43 (Federal Aviation Regulation – Part 43).
No final da década de 80, o DAC (Departamento de Aviação Civil) emitiu o RBHA 43 (Regulamento Brasileiro de Homologação Aeronáutica 43) com grande similaridade com o FAR 43, e isto não é um “achismo”, e sim o que no Prefácio Original do RBHA 43 estava escrito.
Particularmente eu considero esta medida um grande acerto, tendo em vista que regulamentos sobre aeronaves (inclusive abordando manutenção) nos Estados Unidos já existiam desde os meados dos anos 20 do século anterior.
Estas regras foram criadas a partir da somatória de forças de engenheiros das empresas que construíam aeronaves com o Departamento do Comércio Americano com o intuito de alavancar a atividade comercial de voos de passageiros e cargas que já estavam presentes nesta época e servir de um guia padronizado de boas práticas de fabricação e operação das aeronaves.
Com o passar dos anos, a evolução da aviação americana acabou produzindo uma maior amplitude e evolução destas regras chegando até os dias atuais.
Por um lado, basear-se no regulamento americano traz regras maduras e alinhadas com os padrões internacionais (muito relevantes para os acordos regulatórios e operacionais internacionais), mas por outro lado esbarramos em dificuldades de ordem da prática jurídica e cultural (a visão do brasileiro).
O sistema jurídico americano é complexo e baseado no princípio denominado “Common Law”, este princípio usa como fontes do direito (onde baseamos a nossa interpretação) não só as normas estabelecidas, mas nos costumes, nos princípios fundamentais (tão valiosos na cultura americana) e principalmente na jurisprudência (decisões judiciais já proferidas pelo Poder Judiciário em casos semelhantes).
Já o sistema brasileiro é o conhecido como Direito Positivo, que significa que o Estado cria regras que visam regular todas as atividades humanas, de forma utópica seria a existência de normas que fossem capazes de resolver qualquer questão da sociedade.
Em sendo assim, no Brasil, as normas estão acima de qualquer outra fonte do direito como: princípios, costumes, jurisprudência, e na grande maioria das questões o entendimento é: o que está escrito na lei é o que vale.
Bem esta questão acaba por si trazendo dificuldades na hora de nós brasileiros interpretarmos uma norma como esta, criada em um contexto social totalmente diferente do nosso, como o americano.
c) Regras de Interpretação de norma no Brasil
Também devemos ressaltar que o RBAC 43 tem um público bem específico, focado na atividade de manutenção de aeronaves. Esta parcela da sociedade tem muito mais afinidade com técnicas relacionadas as exatas do que com temas de humanas, e principalmente jurídico.
Não posso afirmar, categoricamente, mas acredito que a grande maioria dos MMA brasileiros desconhecem métodos utilizados para interpretação de normas que são disponibilizados pela Hermenêutica (ciência que estuda a intepretação da norma, buscando o seu alcance e aplicação).
O A&P americano (MMA) não tem este cercadinho jurídico onde a norma é praticamente a única fonte de interpretação, então para eles não tem grande influência.
Abaixo destaco alguns métodos utilizados pelos operadores do direito quando estão ante a uma necessidade de interpretação de uma norma, e são eles:
- Método Literal – Busca o significado exato das palavras na lei, buscam entender o alcance da norma baseados na forma como estão escritas;
- Sistemático – Considera a norma dentro de um contexto legal (Legislação da
- ANAC) e as suas relações com as demais regras deste universo;
- Histórico – Busca entender a origem e a finalidade pela qual a norma foi criada;
- Teleológico – Busca o objetivo que a norma visa alcançar;
- Analógico – Aplica a normas a casos semelhantes.
Desta forma vamos a um exemplo, segundo o RBAC 01 “Manutenção preventiva significa uma operação de preservação simples ou de pequena monta, assim como a substituição de pequenas partes padronizadas que não envolva operações complexas de montagem e desmontagem.”
O Apêndice A do RBAC 43, no item A43.1.(c) traz uma lista de atividades de manutenção que são consideradas como manutenção preventiva.
Conforme vemos abaixo o item (c) descrito acima está da seguinte forma, no
regulamento em tela:
“(c) Manutenção Preventiva. A manutenção preventiva é limitada aos seguintes trabalhos, desde que não envolva operações complexas de montagem:”
Perceba no texto que temos o termo “…é limitada aos seguintes trabalhos”, em uma interpretação literal, concluímos que somente os itens aqui listados são manutenção preventiva.
Porém se utilizarmos outro método como o sistemático, poderemos chegar a uma interpretação diferente, vejamos: considere colocar o RBAC 43 interagindo com o RBAC 65, na análise do que podemos entender se uma tarefa é manutenção preventiva ou não.
O RBAC 65.85.(a) que trata das prerrogativas adicionais de quem tem habilitação de célula diz:
- O titular de licença de mecânico de manutenção aeronáutica com habilitação em célula pode, considerando cursos e treinamentos realizados, aprovar o retorno ao serviço de uma célula, ou qualquer equipamento ou componente relacionado a essa célula, após ele ter executado, supervisionado ou inspecionado sua manutenção, manutenção preventiva ou alteração, incluindo também a manutenção preventiva de aeronaves conforme o parágrafo A43.1(c) do Apêndice A do RBAC nº 43. As aprovações para retorno ao serviço estabelecidas nesta seção são aquelas autorizadas conforme previsto na seção 43.7 do RBAC nº 43.
Ora, como pode ser visto acima há dois tipos de manutenção preventiva, uma delas é a listada no RBAC 43 e outra a que está descrita acima de forma “genérica”, perceba que existe um conflito entre os regulamentos.
A boa doutrina jurídica brasileira tem meios para lhe dar com este conflito aplicando alguns critérios no sentido de ajudar como a hierarquia das normas, quais delas é mais específica e por último qual foi a editada mais tarde.
Poderíamos até debruçar nestas ferramentas jurídicas, e chegar as seguintes conclusões:
- Hierarquia – os dois são RBAC e assim estão na mesma posição hierárquica (RBAC é regulamento, e IS é como cumprir o regulamento. RBAC está acima da IS);
- Especificidade – apesar do RBAC 65 não regular apenas a atividade dos mecânicos e do RBAC 43 ser todo voltado para a manutenção, não entendo que o RBAC 43 seja mais específico do que o RBAC 65;
- A Norma publicada por último revoga (cancela) a regra anterior – a porção do texto descrita acima está presente no RBAC 43 desde a sua versão inicial que foi publicado em 2013, por sua vez o RBAC 65 foi publicado em 2018, desta forma quando foi publicado o RBAC 65 trazendo as duas modalidades de manutenção preventiva a lista descrita de forma limitada já existia no RBAC 43, assim sendo revoga-se o entendimento do RBAC 43.
Aqui é somente um exemplo mais temos outros, que se enquadram com a mesma condição de dificultar a interpretação, uma vez que somos MMA e não Operadores do Direito.
Acredito que um MMA entenderá como Manutenção Preventiva (além daquelas listadas no RBAC 43) tarefas que geralmente estão listadas na ATA 12 dos Manuais de Manutenção e aquelas que fazem referências a alguns tipo de reparos (como por exemplo cablagens) e atividades de preservação nos demais manuais de manutenção de uma aeronave.
Como já vimos na Introdução os mecânicos ficam no gueto (debaixo das asas) e os demais profissionais ficam no gueto chamado escritório, tenho ciência que estou fazendo uma generalização grosseira, mas a ideia é didática, na caracterização dos ambientes.
Antigamente, no “mundo graxa” poucas pessoas dominavam o idioma dos manuais, sendo necessário trabalhar com textos traduzidos, que muitas vezes eram feitos por pessoas que desconheciam o Inglês técnico, com isto criou-se um ambiente de pouca interação com os Manuais e de muito dependência do mundo escritório.
Já no mundo escritório, foi ocupado por pessoas que tinham como qualificação fundamental, o domínio do idioma inglês e desta forma sempre
serviram de muletas para mecânicos, inspetores, Responsáveis Técnicos e até os pilotos.
Desta forma, toda a parte de controle técnico, qualidade, processos de organização e de interação com textos legais ficou com o mundo escritório, sem contar que no afã da agradar os clientes acabaram fazendo várias tarefas relacionadas a quem deveria cuidar da aeronave (o designado do Operador).
Estes mundos interagem entre si para fazer com que a atividade funcione, porém, a característica descrita acima levou a uma cultura onde o mecânico odeia a tal papelada (mas assina, os formulários elaborados pelo mundo escritório), enquanto o mundo escritório ficou profundamente cartorial (apegado demasiadamente a formalidade, em detrimento do conteúdo conceitual), principalmente quando interage com os técnicos da Autoridade Aeronáutica com nenhuma ou pouca bagagem de manutenção.
Tentando ilustrar o que foi já descrito neste tópico, vamos a um exemplo onde precisaremos da interpretação do RBAC 43:
A já mencionada lista de manutenções preventivas do RBAC 43, no item (16) temos a seguinte tarefa classificada como manutenção preventiva: “(16) pesquisa de pane e reparos de fiação no circuito elétrico dos faróis de pouso”.
Como este é o único item relacionado com reparo em cablagem na lista de manutenção preventiva do RBAC 43, o mundo escritório e boa parte da Autoridade Aeronáutica dirá que somente manutenção no circuito elétrico do farol de pouso é possível classificar como manutenção preventiva (interpretação literal).
Vamos colocar o foco na finalidade desta regra (método teleológico).
A manutenção preventiva caracteriza-se pela simplicidade de execução, como já vimos acima em sua própria definição e, o que é que o “mundo graxa” vê, com relação ao reparo em cablagem de farol de pouso como algumas questões importantes:
- O circuito do farol costuma ser um dos de maior consumo em aeronaves pequenas, geralmente tem uma corrente elétrica por volta de 10 Ampere, e um reparo na cablagem malfeita poderá acarretar uma fonte de calor produzida pelo mau contato;
- Em várias aeronaves, o farol de pouso está instalado na perna do trem de pouso, desta forma, a rota desta cablagem deve ser feita de forma adequada, se não com o movimento da perna do trem esta cablagem poderá ser danificada;
- Outro ponto está no caso de usar uma emenda de fios (“splice”), este não poderá ficar localizado em uma posição onde ocorra movimento da cablagem para acompanhar o mecanismo, pois ele criará um segmento rígido (onde está a emenda) e não desempenhará, como o cabo flexível elétrico (fio), no momento do movimento do sistema do trem.
Com certeza, este não é o circuito de iluminação mais simples para se fazer um reparo, além do que o farol de pouso é requisito para operação noturna [RBAC 91.205.(c).(4)].
Um MMA, com conhecimento em sistemas elétricos, olha para esta norma e chega à conclusão que o regulamento está apontando para uma linha de corte, onde circuitos com consumo menor do que os tais 10 Amperes são passíveis de serem classificados como manutenção preventiva, desde que o acesso e/ou o teste do sistema não sejam complexos. Já circuitos de maior consumo não poderão ser classificados como manutenção preventiva.
Tal interpretação é um ambiente muito fluído para a cultura cartorial, falta critérios objetivos e deixa o mundo escritório totalmente desconfortável, por não ter esta visão clara e objetiva da atividade de execução das tarefas de manutenção.
Você pode estar pensando, mas esta classificação tem algum efeito prático? E a resposta é: sim!!! a manutenção preventiva pode ser aprovada para retorno ao serviço por um MMA (RBAC 43.7 e RBAC 65.85). Alguns operadores optam por ter alguém administrando a manutenção de suas aeronaves e, um MMA, além de acompanhar todos os programas das aeronaves, a manutenção contratada, pode sim fazer tarefas de baixa complexidade e no caso a manutenção preventiva é uma delas.
3 – CONCLUSÃO
Os fatos que descrevi acima tem muito a ver com a aviação executiva e de forma alguma é um modelo que representa todos. Acredito que as companhias aéreas e as organizações de manutenção maiores, com sistemas mais organizados de operação, estão menos sujeitas a diversos pontos levantados aqui, mas sem dúvida, sofrem com a interpretação restritiva.
Também gostaria de ressaltar que a ANAC vem fazendo várias ações que vem melhorando o mercado aeronáutico como um todo e, algumas críticas pontuais que fiz, em nada tem a ver com estes esforços.
Toda vez que nós brasileiros pensamos em uma melhoria, qualquer que seja ela, que envolva atividade do Estado, pensamos logo em criar uma regra, mas no caso do RBAC 43 mudanças neste regulamento só farão com que nos afastemos, cada vez mais, de um padrão internacional.
De verdade, o problema não está na regra (apesar que existem alguns pontos a serem discutidos) e sim em como ela é interpretada, os americanos pensam em negócios em um mercado em crescimento e expansão; por outro lado nós pensamos em nos defender de uma relação indivíduo X Estado cercada de muita desconfiança.
Um Servidor Público Concursado passa por uma prova com alto grau de dificuldade para acessar a posição desejada e, isso por si só, faz com que haja uma seleção de excelentes potenciais que ingressam na administração pública, porém a falta de uma estrutura adequada, aliada a esta relação com a sociedade um tanto desgastada, são motivos para a adoção de uma postura um tanto defensiva, que reflete em uma interpretação tão cartorial.
Este Agente do Estado é revestido de “fé pública” e seus atos devem estar alinhados com os princípios constitucionais da administração pública, o que é um privilégio, mas também uma responsabilidade.
É inegável que o nível de interação da ANAC com os diversos segmentos, tanto do Mercado Aeronáutico, em geral, como com as demais Autoridades tem muito a acrescentar com a nossa atividade, inclusive com o nosso conhecimento e formação.
Tenho certeza de que somos um país um tanto novo, com uma sociedade que teve que se desenvolver, rapidamente, ante a necessidade de crescimento econômico que já ocorreu no passado e, que logo, estaremos mais bem alinhados no que tange a nossa atividade e operação. Ao escrever este material penso apenas em contribuir com a nossa atividade profissional e não em ser o dono da verdade, interpretações restritivas como as que existem hoje, punem quem quer trabalhar corretamente e premia aqueles que pouco se preocupam com as regras.